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Jerónimo Corte Real e a sua quinta de Vale de Palma, em Évora. Grada 176. Francisco Bilou

Jerónimo Corte Real e a sua quinta de Vale de Palma, em Évora. Grada 176. Francisco Bilou
Foto: Cedida
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Com honras de representação no monumento a Camões, inaugurado em Lisboa, em 1867, Jerónimo Corte Real era então uma das oito figuras escolhidas para expressar o melhor das letras e ciências portuguesas do passado. Esta dimensão romantizada do heroísmo português associada ao maior poeta nacional, concorda com o alto estatuto literário que Jerónimo Corte Real já então ganhara nos catálogos europeus de obras raras, em particular nos círculos livreiros espanhóis.

Com efeito, após 1830 os catálogos da ‘Library of Harvard University’, da Thomas Thorpe’s, da ‘Bibliotheca Heberiana’ ou da ‘Southey’s common-place book’ popularizaram sobretudo a “Felicissima victoria concedida dal cielo al Señor Don Juan d’Austria…” (Lisboa, 1578, também dita ‘Austríada’). Já em Espanha, a atenção ao poeta incluía o ‘Sucesso do segundo cerco de Diu’, manuscrito dado à estampa em Lisboa, em 1574.

Este marcado interesse espanhol pelos escritos de Corte Real não era inusitado, pois muito cedo Lope de Vega (1562-1635) e Miguel de Cervantes (1547-1616) louvaram a dimensão poética do ‘caballero português’, não esquecendo que “cuando en 1585 [Mateo Vázquez de Leca, c. 1542-1581] regresó de Portugal, entre los libros que trajo aparece citado uno ‘Dela victoria concedida del cielo al señor don Juan por Hieronimo Corte’” (Sánchez-Molero, ‘La epístola a Mateo Vásquez’, Biblioteca de Estudios Cervantinos, 2010, pp. 228-229).

No nosso país, todavia, o que mais ajudou a popularizar o poeta, mesmo tendo em conta a reedição do ‘Sucesso do segundo cerco de Diu’, em 1784, foi o poema ‘Naufrágio de Sepúlveda’ (17 cantos, escritos em decassílabos brancos), assim vulgarizado na ‘História Trágico-Marítima’ (1735-36), mas cuja edição ‘princeps’ se deve a Simão Lopes (Lisboa, 1594). Este poema, tratando do infortúnio familiar de Manuel de Sousa Sepúlveda, um fidalgo português que viveu largos anos nas “partes da Índia”, embora a sua ascendência castelhana por via paterna o ligasse a Évora, foi composto por Jerónimo Corte Real na fase final da sua vida, que se supõe passada na quinta de Vale da Palma, propriedade rural no termo desta cidade que chegara a seu pai por morte de um irmão mais velho, Jerónimo Corte Real, tio homónimo do poeta (e talvez seu padrinho).

É na capital alentejana, com efeito, que se acham algumas das melhores memórias de vida do poeta. Desde logo porque aqui pode ter nascido entre 1525-27, data que se deduz de duas circunstâncias combinadas: o facto de ter sido o terceiro filho de Manuel Corte Real e de Brites de Mendonça, “donzela da Rainha”, e do matrimónio deste casal ter ocorrido em 1522 (ANTT, ‘Corpo Cronológico’, Parte II, mç.101, nº 125). Mas, sobretudo, porque aqui sabemos ter vivido os últimos anos de vida, sendo sepultado pela Misericórdia de Évora no dia 16 de novembro de 1588 (ADE, F:SCMEVR, SC:H, SR:003, cx. 287, Lv. 1163, fl. 94V). Esta informação tão precisa deve-se ao facto de Jerónimo Corte Real ter ocupado o cargo de Provedor daquela instituição no biénio de 1586-87, embora só cumprindo metade do mandato. Aliás, a reiterada notícia da sua ausência durante o ano de 1587 faz supor que já então estaria doente ou incapaz.

Casado com Dona Luísa da Silva, dama da Rainha Dona Catarina, em 1561, e vivendo preferencialmente em Lisboa até pelo menos 1580, Jerónimo Corte Real já se acha documentado em Évora, em 1585, quando, na qualidade de Juiz da Irmandade das Almas da igreja de Santo Antão apadrinha um enjeitado, “filho da igreja” como então se dizia (ADE, Paroquiais de Santo Antão, Lv. 8, Cx. 3, fl. 4v). É precisamente neste ano, e na qualidade de Juiz daquela irmandade, que pinta o painel de ‘S. Miguel e as Almas do Purgatório’. Embora único, é trabalho pictórico competente e audaz, sobretudo ao nível do debuxo, e que por fortuna se conserva no interior da igreja. Não custa ver na figura feminina desnuda, como propõe Vitor Serrão, “a fermosa Lianor, que o seu tormento/ Revolve na cansada fantasia” do Naufrágio de Sepúlveda.

Em apoio desta sua presença tardia na capital alentejana, sabemos que o poeta-pintor vivia em Lisboa em fevereiro de 1579, altura em que apadrinha uma filha do pintor espanhol Fernão Gomes. Esta ligação a um dos grandes pintores régios radicados na capital portuguesa faz jus à faceta menos conhecida de Corte Real, a de iluminador, calígrafo e pintor de cavalete.

Note-se, a propósito, que esta sua permanência em Lisboa após a morte do último rei da dinastia de Avis ajuda muito a enquadrar um dado histórico conhecido: o facto de a sua idade (passante os 50 anos) já não lhe ter permitido acompanhar o jovem rei D. Sebastião na desastrosa ‘Jornada de África’, onde boa parte da fidalguia portuguesa ou morreu, ou ficou cativa.

Em 1580, o próprio Filipe II de Espanha, ao entrar em Portugal, não esquece Jerónimo Corte Real, o que prova o seu alto estatuto social, não obstante nunca ter usado a honra nobiliárquica de ‘Dom’. À beira de se tornar também rei dos portuguese, não é de admirar este apreço do monarca espanhol: os Corte Real tinham origens castelhanas; a sua fama militar era conhecida; e o poeta havia dedicado ao ‘Prudente’, em 1576, a “Felicissima Victoria de Lepanto”, gesto logo retribuído com invulgar deferência (Hélio Alves, ‘Jerónimo Corte Real. Sepúlveda e Lianor, Canto Primeiro’, Coimbra 2015).

Voltando ao Alentejo, é a António Francisco Barata (1836-1910), amanuense da Biblioteca Pública de Évora e prolífero ‘eborografo’, que devemos o primeiro esboço biográfico de Jerónimo Corte Real, simbolicamente produzido em 1899 por ocasião da visita do rei D. Carlos a Évora. Note-se, a propósito, que a recuperação deste esquecido ‘herói local’ surge na sequência da identificação de uma ‘Alegoria aos Descobrimentos Portugueses’ em casa de Vasco da Silveira (à rua de Valdevinos), bem como da localização das ‘Casas Pintadas’ de Vasco da Gama, embora, como se sabe, tais casas pertenceram a Francisco da Silveira, coudel-mor, e a ‘Alegoria’ (hoje no Museu da cidade) mais não seja do que uma peça de importação italiana do final do Quattrocento, talvez de teor emblemático ligado a jogos equestres.

Pese embora o contexto ideológico oitocentista de onde emergiu a figura de Jerónimo Corte Real, essa primeira investigação de Francisco Barata tornar-se-ia fundadora das vivências eborenses do ilustre poeta-pintor. Foi Barata, aliás, quem recuperou da visita a Vale de Palma a tradição local de que ali “vivera muitos anos um Conde, e que alli fallecera” (A. F. Barata, ‘Subsidios para a biografia do poeta Jeronymo Corte Real’, Évora, 1899). A fotografia resultante dessa visita é bem sugestiva do estado de degradação em que já se encontrava por esse tempo a estrutura residencial (foto anexa).

‘O Paço’, como era conhecido, já pouco lembrava a primitiva ‘quinta’ com o seu “assento de casas, pomar e soveral”, tal como é referida em 1539 quando dela tomou posse o tio homónimo do poeta já aqui referido (ANTT, ‘Casa de Aveiras e Vagos’, cx. 86, mç. 16, n.º 2). Importa notar que nesse ‘instrumento’ de posse, no qual, aliás, surgem referidas as herdades confinantes (uma das quais a “que foi de Garcia de Resende”), assinam como testemunhas dois pedreiros de Évora, Diogo Vaz e Fernão d’Eanes (este talvez filho do mestre do claustro do Espinheiro); o que mostra a franca possibilidade de ambos conduzirem alguma empreitada em Vale de Palma por esse tempo.

Tendo presente que a feição inicial desse paço rural estaria confinada a uma torre, como então era vulgar na região, é de admitir que o principal investimento estrutural seja desses anos em torno de 1539. As abóbadas de cruzaria, a decoração das mísulas e o desenho das janelas ainda conformadas ao gosto manuelino, mas onde já insinuam soluções renascentistas, quadram bem com a campanha obreira daqueles dois pedreiros locais. E se o arco do alpendre, a marcar o ‘recebimento’, é a estrutura de aparato que mais confere ‘modernidade’ aos volumes do Paço, já a ‘antiguidade’ do local é dada tanto pela vizinhança da ‘villa’ romana da Fonte Coberta como pela coincidência de orientação do conjunto residencial de Vale de Palma com os templos romanos de Évora e de Sant’Ana do Campo (Arraiolos).

Um paço rural abastado, pois, cuja proximidade ao rio Degebe, onde o morgado possuía um moinho de água, conhecido por ‘Moinho da Corte’ (do Corte Real), pode ter oferecido o necessário bucolismo e recato contemplativo à inspiração poética de Jerónimo Corte Real. Destes anos de retiro literário e pictórico, destaca-se, além do citado Naufrágio de Sepúlveda e um perdido poema sebástico sobre a infeliz Jornada de África, o ‘Auto dos Quatro Novíssimos do Homem, no Qual Entra também uma Meditação das Penas do Purgatório’, obra editada apenas em 1768 e de que uma desaparecida pintura da ‘Mocidade e Velhice’ parece ser o epítome perfeito.

Apesar do atual bom conhecimento da antologia poética de Jerónimo Corte Real, sobretudo graças aos contributos de Hélio Alves, continua a faltar uma biografia de referência que lhe complemente outros predicados artísticos como os de iluminador, calígrafo e pintor de cavalete. Pelo que julgamos saber, sendo já voz pública, o Professor Vitor Serrão conserva vivo esse apaixonado desejo. Razão para confiarmos que tal projeto venha brevemente trazer mais novidades sobre esta ilustre figura histórica da cultura portuguesa e europeia, cuja grandeza universal, a par de Francisco de Holanda e de Luís Vaz de Camões, muito importará celebrar em 2027, na Évora, Capital Europeia da Cultura, até pela feliz coincidência com o 5º centenário do seu nascimento.

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