Situado no antigo largo da Barreira, atual largo Barreto Caldeira, perto da face nascente do castelo da vila e da primitiva matriz, a construção deste chafariz (conhecido localmente por ‘Fontinha’) deve-se ao senhor da terra, o Duque de Bragança, D. Teodósio I (1510?-1563).
Em consonância com o estatuto deste seu encomendador, trata-se de uma obra de alta qualidade plástica, lavrada em mármore venado de Estremoz com finos lavores ‘ao romano’, afins da arte produzida por Pero Gomes em São Bernardo de Portalegre. A data inscrita em dois pequenos rótulos sobre os medalhões heráldicos da Casa de Bragança e do município local concorda com esta atribuição autoral – FACTUS 1556.
De planta retangular por justaposição de dois tramos quadrados, o chafariz é composto por um robusto espaldar em silharia, tanque de bicas e cobertura em alpendre, porticada ao modo clássico. Esta estrutura apoia-se em três finas colunas decoradas de relevos e apresenta-se coberta por duas singulares abóbadas tronco-piramidais, fechadas por cúpulas esféricas muito abatidas com revestimento em escama, ambas coroadas por um pequeno ornato floral de ressaibos manuelinos.
Do ponto de vista formal, trata-se de um modelo relativamente comum na época, de que o desaparecido ‘Chafariz d’El Rei’, em Lisboa, talvez seja o melhor exemplo. Todavia, é bem provável que a sua traça proceda do chafariz que recebeu a primeira Água da Prata, em Évora, obra levantada em 1537 junto à igreja de Santo Antão e logo destruída, em 1570, aquando da construção da atual fonte henriquina da Praça de Giraldo.
Um dos sinais de que o Chafariz da Fontinha segue o modelo de Évora é a presença comum de bicas de água corrente em forma de leão (no caso de Évora quatro leões, todos de origem romana). Quem o afirma é o eborense Francisco Ferreira Varregoso, então prior da matriz de Nossa Senhora da Assunção desta vila alentejana: “Tem huma magnifica fonte junto a matrix de excelente fabrica, muito abundante de agoa e a deita por tres leões e das sobras della se regam muitos sidrais”.1 Por sua vez, Luís Keil, no Inventário de Portalegre, informa que as “bicas e tanque já não são da primitiva construção”.2
Outra relação curiosa com a capital alentejana é dada pelo pormenor escultórico que ilustra as armas municipais de Alter do Chão (uma fonte em forma de píxide, cujas bicas de água corrente, localizadas na mediana do bojo, vertem para um tanque poligonal), desenho decalcado da fonte da Porta de Moura, em Évora, lavrada precisamente em 1556.
O que significa que, além da óbvia circulação de modelos, o trabalho escultórico destas peças se concentra provavelmente em torno dos mesmos mestres e dos mesmos centros de extração do mármore (Estremoz/ Vila Viçosa/ Borba).
Em apoio deste pressuposto, lembre-se que no claustro das Maltesas de Estremoz permanece um lavabo em mármore cujo desenho replica a mesma fonte eborense, obra miniatural produzida nesses anos por pedreiros locais.
Aliás, sabemos que alguns deles lavravam a pedra à porta de casa. Com efeito, André Rodrigues, Álvaro Mendes, António Fernandes, Felipe Gomes e João André, são oficiais lavrantes que recorrentemente obtém do município de Estremoz a necessária autorização para lavrarem pedra à porta de suas casas de morada.
A estes, junta-se o mestre da matriz de Veiros, João Álvares, Cabicalvo de alcunha, que em junho de 1554 solicita licença à câmara de Estremoz “para que alem das suas carretas posa tomar quatro ate cinquo caRetas para lhe ajudarem a leuar a pedraria que faz para os estudos que o cardeall manda fazer em a cidade d’euora”.3 Este “serviço da pedra do cardeal” era, como se percebe, a vasta obra da Universidade jesuíta e a pedraria que João Álvares pretendia transportar para Évora era provavelmente as monumentais colunas do Pátio dos Gerais.
Significa isto que a mão-de-obra então disponível em Estremoz para arrancar, talhar e transportar o mármore era, como não poderia deixar de ser, numerosa e bastante qualificada. E, como se apura da documentação recenseada nas ementas da Câmara de Estremoz (1554-1559), a figura do pedreiro, nessa época e no contexto da exploração das pedreiras locais, correspondia a um profissional que geria toda a cadeia operativa do mármore: o arranque e desbaste estereotómico da pedra, entalhe escultórico e transporte, este feito através de ‘carretas de bois’.
Os casos dos pedreiros João Álvares e Pero Gomes, em Estremoz, e Manuel Pires, em Évora, mostram que estes mestres, além de empreiteiros de obra de pedraria, eram simultaneamente empresários de transporte da pedra. Nesta qualidade de ‘pedreiros- carreteiros’, este trio de mestres alentejanos foi responsável pelas principais obras do arcebispado de Évora durante o múnus de D. Henrique.
Pese embora esta oferta de mão-de-obra tão qualificada, parece claro que o trabalho escultórico do chafariz de Alter do Chão, pela sua qualidade e delicadeza de talhe, não pode ser de outro mestre senão de Pero Gomes. Tendo em conta os já referidos paralelos de São Bernardo de Portalegre, em especial o túmulo de D. Jorge de Melo (1540-42) e o portal da igreja (1538), e o facto de já não se encontrarem vivos, em 1556, os escultores franceses Nicolau Chanterene e Francisco Lorete, a autoria deste belo chafariz ‘ao romano’ parece indiscutível.
De facto, Pero Gomes, pedreiro-lavrante de nome firmado na região desde 1538, acabava de tomar de empreitada a obra de reconstrução da matriz de Estremoz (1554-1563), projeto de envergadura e de sua exclusiva responsabilidade, mas que só no final dessa década alcançará expressão monumental.
Não parece, pois, inconciliável a obra da matriz de Estremoz com a do chafariz de Alter do Chão, até porque este deverá ter sido produzido em Estremoz, acaso ‘à peça’ e por subcontratação local de outros pedreiros para a produção da estereotomia da pedra. Aliás, não surpreenderia que o chafariz tivesse resultado de um trabalho de equipa dirigido por Pero Gomes, este o responsável pelo desenho da peça e pelo entalhe da decoração de grutesco.
Tal como em Portalegre, Pero Gomes mostra particular cuidado na decoração das colunas. Estas, não sendo canónicas na sua proporção, tão pouco nos capitéis pseudo-coríntios, mostram um reportório festivo de relevos de assinalável plasticidade: florões suspensos por argolas, frutos sustidos na dobra de panejamentos, pendurados com mascarões, flores e frutos.
Destaque ainda para a arquitrave decorada de grutescos e para o frontão, corrido, a todo o perfil, por enrolamentos e vasos nas cantoneiras, trabalho de cinzel muito afim da obra portalegrense de Pero Gomes, caracterizada mais pelo domínio da matéria do que pelo conhecimento do cânone clássico.
Fazendo jus à qualidade do património histórico de Alter do Chão, acumulado desde a velha Abelterium, o Chafariz da Fontinha, hoje classificado como Imóvel de Interesse Público (1974) e alvo de recente campanha de conservação e restauro (2020), é uma das boas peças artísticas do Renascimento no sul do país. Na verdade, expressão de um gosto e de uma cultura ‘ao romano’ na memória do mais qualificado escultor alentejano do século XVI, mestre Pero Gomes de Estremoz.