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O claustro do mosteiro da Assunção de Faro e os seus mestres (1545-1550). Grada 163. Francisco Bilou

O claustro do mosteiro da Assunção de Faro e os seus mestres (1545-1550). Grada 163. Francisco Bilou
Foto: Cedida
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Bem se sabe como a escassez documental é responsável por muitos anonimatos artísticos na nossa História da Arte. Não raro, também, alguma desatenção historiográfica. Por isso não é de estranhar que o mestre-pedreiro eborense Gaspar de Torres e o mestre carpinteiro Gomes de Torres, talvez seu irmão, sejam um desses casos onde a leitura dos poucos documentos remanescentes não tenha permitido conferir uma maior atenção no contexto das grandes obras de pedraria e carpintaria do reinado de D. João III.

Ainda assim, não fora os estudos pioneiros de Horta Correia (1987) e Vitor Serrão (1999), secundados pelas monografias de João Marques (1991) e Dália Paulo (2007), e continuaria a desconhecer-se a própria existência destes mestres, talvez familiares próximos (pai e tio?) de Jerónimo de Torres, o conhecido Cavaleiro da Casa do Cardeal-Infante D. Henrique e mestre das suas obras.

Pese embora este bom contributo bibliográfico, o que parece continuar a faltar à fortuna crítica dos dois mestres é o reconhecimento do seu protagonismo artístico na condução da empreitada do claustro das clarissas de Faro entre os anos de 1545 a 1550. É justamente para reparar alguma desatenção historiográfica em relação a estes muito esquecidos mestres que aqui se propõe a releitura documental e a reapreciação crítica da sua obra produzida no claustro e nas dependências anexas do referido mosteiro.

Concluída a primeira fase de construção do mosteiro das clarissas de Faro com a sagração do corpo da igreja por volta de 1539, data inscrita no portal do templo, só ao primeiro dia de dezembro de 1545 a rainha Dona Catarina mandou dar 358 cruzados para a continuação da reforma arquitetónica do cenóbio, verba recebida a 10 desse mês por Gregório de Palermo, “recebedor das obras do dito mosteiro”. Razão de júbilo da indigna abadessa, Soror Beatriz, conforme missiva de agradecimento dirigida à soberana uma semana depois. Esta importante verba, ainda que de finalidade não explicitada, foi empregue com muita probabilidade na construção do claustro e nas dependências anexas.

Como se tem sublinhado desde o estudo de Horta Correia, o mestre da primeira fase da empreitada da Assunção de Faro foi o pedreiro Afonso Pires, a quem a Rainha se referiu, em 1543, como “mestre das obras do mosteiro de Nossa senhora da cidade de Farão”, e do qual recebeu por esse tempo um “debuxo e informação das obras do mosteiro” por intermédio do pedreiro António Gomes.

Supõe-se que o debuxo fosse o risco do claustro, obra que só se iniciou no final de 1545 (ou já no início do ano seguinte) após a necessária validação técnica e artística na Corte e com o envio para o almoxarifado de Faro dos referidos 358 cruzados, enviados de Évora onde a família real então residia.

Impossível saber se algum arquiteto régio teve intervenção no apuro final da proposta remetida de Faro, circunstância bastante plausível, pois o que resultou em obra parece bastante coerente com o tipo de encomenda régia seguida na época: uma planta quadrada de 20 varas de largo (22 metros) com alçados iguais de quatro tramos e varanda ampla apoiada em três colunas a sustentar um sólido lintel inteiramente de pedra, e nove contrafortes bem ressaltados, sendo os quatro angulares de face chanfrada.

É, indiscutivelmente, uma bela peça arquitetónica, afim dos modelos claustrais contemporâneos da Hospedaria do Convento de Cristo de Tomar (João de Castilho, 1538-1543), do Convento das Chagas de Vila Viçosa (1539) e da Penha Longa de Sintra (1540), e já seguindo, genericamente, a lição ‘ao romano’ divulgada pelo espanhol Diego de Sagredo. É certo que não exibe nenhum atrevimento erudito como o claustro da Graça de Évora (1542), obra notável do arquiteto Miguel de Arruda, mas a sua expressão artística já nada deve ao modelo proto-renascentista do mosteiro jerónimo do Espinheiro que os irmãos João Álvares e Álvaro Eanes produziram duas décadas e meia antes na mesma cidade alentejana.

Resolvida a autoria da traça do claustro, a questão que importa é a de se saber se Afonso Pires permaneceu na direcção do estaleiro após 1545 ou, pelo contrário, esse encargo passou a ser assumido por outrem, acaso tomando a obra de empreitada após o habitual pregão em praça pública.

Neste contexto particular seria importante saber-se qual o destino dos 280 bordos de Flandres que em novembro de 1546 se enviarão ao mosteiro da Assunção de Faro, os quais, aliás, contenderam com o aprovisionamento dos que já estavam destinados à obra do cadeiral do coro de Belém por esse tempo. De facto, tal quantidade de madeira (e não foi o único lote enviado) pode bem enquadrar-se no apuro de obras intestinas, nomeadamente do cadeiral do coro, e não no madeiramento da sobre castra do claustro que então se iniciava.

Leva a supor que assim seja a informação de Frei de Olivença ao remeter à Rainha pelo “mestre da carpintaria do mosteiro” (Gomes de Torres), em setembro de 1548, a relação do que era “feyto dos cem bordos que V. A. mandou destes derradeyros”: com eles se forrara “a casa da samcrystya que hee muyto grande e se fezerom os caxões e almaroos para os ornamentos (…) e os encostos assentos do capitulo e se forrou outra casa no mesmo andar da claustra que hee para ser escola das novyças e se fezerom portas para ho refeytoryo do mosteyro e para a enfermarya” (ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 81, nº 49).

Estas obras de carpintaria e marcenaria, concluídas em setembro de 1548, ficaram, como enaltece o visitador do Mosteiro, “muyto chans e muyto bem labradas e lympas a contentamento das freyras” (Idem). De resto, ao mesmo visitador pareceu-lhe a obra do claustro, em particular “as varandas de cyma da claustra (…) tão espaçosas e tam bem assombradas que as de outro nenhum mosteyro são mylhores” (Idem).

Se os trabalhos de carpintaria e marcenaria estavam concluídos no final do verão de 1548, altura em que o claustro foi “çarrado” à observância (a 16 de setembro, um domingo), não sem antes se permitir “ao povo que vyesse ver ho mosteyro antes que se çarrase” (vindo na ocasião) “toda a gente da terra e muyta de Castela” (Idem), o grosso das obras de pedraria ficaram concluídas algum tempo antes, verosimilmente no início de maio desse ano.

Com efeito, a 9 deste mês, Gomes de Torres deslocou-se à corte a dar conta de como se havia acabado o dinheiro para os apuros finais: o ladrilhamento do pátio do claustro, da sacristia e do capítulo e uma escada que subia para a varanda (que era serventia de toda a Casa). Deve ter sido nesta ocasião que o mestre carpinteiro da obra se encarregou de levar a Lisboa algumas outras preocupações decorrentes das dívidas contraídas na obra da “enfermaria e refeitorio das enfermas que he hum lanço todo da crasta”, as quais estavam, segundo informação escrita de frei Pedro de Setúbal “já madeiradas e se telharão esta somana com telha velha que tirej dallgumas casas que se ão de derrubar para que os carpinteyros as pudessem soalhar e forrar que tambem ja tem bordos e tavoado aparelhado” (ANTT, Fragmentos, cx. 2, mç. 5, nº 23).

Dito isto, e pelo que os documentos revelam, apesar de algumas dúvidas permanecerem, Gaspar de Torres e Gomes de Torres são os obreiros da empreitada do claustro e dependências anexas do mosteiro de Nossa Senhora da Assunção de Faro, entre 1545 e 1550. O primeiro, mestre de pedraria, o segundo mestre de carpintaria e a quem se incumbe das diligências administrativas da obra. Quanto a Gaspar de Torres, da leitura da certidão que lhe foi passada pelo escrivão das obras do mosteiro, Sebastião Freire, em novembro de 1550, não parece restar dúvida quanto à sua função no estaleiro: “foi mestre das obras do dito mosteyro e ençarramento delle” (ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 85, nº 101). Ou seja, que as fez e as finalizou.

Adite-se mais em favor do mérito artístico de Gaspar de Torres que das achegas à obra do claustro lhe foi paga em aditamento a execução de “huma pya d’agoa bemta (…) na Igreja e hum portall na sobrecastra e humas lageas do tavoleyro da escada e asy os degraos para a sobre castra” (Idem). E, como se não bastasse a soma desta informação, eis que se diz a dado passo: “mandouos que todas as achegas de tyjollo e pedraria lavrada que ficaram por despender a guaspar de tores que foy mestre das obras deste moesteyro de nosa Senhora da asunçam lhe tomeis pagas pelos preços que valecem” (Idem).

É, pois, muito significativa a atribuição da “pedraria lavrada” a Gaspar de Torres no contexto da empreitada do claustro da Assunção de Faro, entre 1545 e 1550. De facto, se a Afonso Pires coube a traça do claustro, segundo debuxo aprovado pela rainha D. Catarina, em 1543, a Gaspar de Torres coube, além de “toda a obra de pedraria e alluenarya (…) e todas as achegas”, a expressão escultórica, de que sobressai a qualidade inventiva e até, convenhamos, uma assinalável qualidade plástica. Tome-se o exemplo da decoração dos contrafortes do claustro e veja-se uma identidade do bestiário medieval resolvido na elegância das formas já renascimentais. Simbiose perfeita de estilos e talvez um dos bons exemplos em Portugal dessa suave dissolução das formas tardo-medievais na “norma clássica”.

Mas, pode um mestre provincial, de desconhecido nome e currículo, malgrado a sua passagem fugaz na obra da igreja de S. Miguel de Penela, em 1542, como lavrante do arco da capela-mor, ser capaz de dirigir um estaleiro tão importante como o da Assunção de Faro e logo com uma tão desenvolta expressão escultórica? A resposta é claramente afirmativa. E não só pelo que se analisou documentalmente. Também pela comparação coeva com outros casos conhecidos, de que o mais relevante é o mestre pedreiro-imaginário Pero Gomes, surpreendentemente o autor do túmulo do bispo de Portalegre, obra que andou atribuída, recorde-se, aos melhores escultores do tempo, nomeadamente a Nicolau Chanterene.

Facto que nos coloca perante um novo mestre pedreiro-lavrante, acaso também imaginário, a seguir doravante com mais atenção nas obras coevas de Faro, quem sabe competindo no aro regional algarvio com André Pilarte. E, já agora no mesmo folgo, não esquecer a figura de Jerónimo de Torres, mestre que seguiu os passos deste seu conterrâneo e familiar, talvez o próprio pai, com o qual poderá ter aprendido os primeiros ensinamentos na arte de edificar. Ele que foi o grande responsável operacional pela obra da Cartuxa de Évora entre os anos de 1587 a 1604, sob traça de Vincenzo Casale e supervisão artística de Nicolau de Frias e Pero Vaz Pereira.

Infelizmente nada remanesceu da obra de carpintaria e marcenaria de Gomes de Torres em Faro. Todavia, pelas descrições elogiosas das freiras é de crer de que se tratou de obra de qualidade. O seu estatuto de intermediário da empreitada com a comitente, a própria Rainha Dona Catarina, é bem revelador de que se trataria de um oficial de alguma importância no quadro das obras régias. Do que não há dúvida é que ele e o seu possível irmão são os mestres responsáveis pelo claustro e dependências anexas do mosteiro de Nossa Senhora da Assunção de Faro entre os anos de 1545 a 1550.

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