Já aqui trouxemos a esta revista a notícia de Gómez Fernández, jardineiro valenciano contratado pelo rei D. João II para criar de raiz o horto do paço real de Évora. E aí vimos como as intenções do ‘Príncipe Perfeito’ ficaram expressas nesse contrato de 1493: “que a orta dos nossos paços da nossa cidade de Evora fosse prantada de arvores e ervas de vertude e fremosas de que convem as taes ortas serem enobrecidas” (Aurora Carapinha. ‘Gómez Fernández e a Horta do Paço a-par-de São Francisco’, ‘Monumentos’, N. 17, DGMEN, 2002, pp. 77-81).
Infelizmente, pouco sabemos sobre a extensão e organização interna desse espaço de recreio palaciano, mas o mais natural é que Gómez Fernández replicasse em Évora o modelo de jardim da zona levantina, tendo como referência o Palácio Real de Valência onde havia sido, aliás, “ortoal e guarda da dita orta”. Desse jardim valenciano existem algumas descrições coevas pelas quais sabemos ter sido um verdadeiro “paraíso terreal”, com zonas delimitadas com citrinos (laranjal, sobretudo), sebes de murta a rodear talhões de plantas medicinais e aromáticas, trepadeiras armadas artificialmente em túneis e caramanchões, caminhos mais ou menos de malha ortogonal, quase sempre pontuados a distâncias regulares por fontes, bancos e até capelas/oratórios.
O que sabemos com mais certeza é que, em 1504, foram feitas algumas despesas na horta dos paços de Évora, nomeadamente “as portas E os andajmos donde Elle (Gómez Fernández) fez as canjçadas E o cano que mandamos correger” (ANTT, Corpo Cronológico, Parte II, mç. 8, n.º 54), facto que, ao menos, aponta ao desenho de um jardim repartido por ‘quadras’ e onde não faltava a rega através de canalizações com água proveniente dos sobejos do antigo chafariz da rua da Selaria. Note-se que só após 1537 o jardim, horta e laranjal, passaram a ser regados diretamente com os sobejos do Aqueduto da Água da Prata.
Como seria de esperar, a presença em Évora do jardineiro valenciano foi muito estimada pelos reis portugueses. Em 1501, D. Manuel atribuía a Gómez Fernández o estatuto de escudeiro de sua casa, para, três anos depois, lhe dar um chão junto às terecenas para nele fazer casas e pomar.
Todavia, a 7 de junho de 1519 já não é ele, mas Filipe de Barrera, que recebe de Vasco Queimado, fidalgo da casa real e feitor das casas da Guiné e India, sete varas e meia de “panos pintados de cambaia” para o retábulo (da capela) do Jardim da Rainha. É este o documento: “Vasco queymado Nos ell Rey emviamos muito saudar encomendamo vos que mandeis dar ao Vallenciano que tem caRego do Jardim da Rainha mynha sobre todas muyto amada e prezada molher huma cortina para o retauolo que estaa no dito Jardim de qualquer pano que vos bem parecer”. (ANTT, Corpo Cronológico, Parte I, mç. 24, n. 88).
Esclareça-se que a família real havia chegado a Évora pouco tempo antes e o rei fazia por agradar à novel esposa, Dona Leonor (terceira esposa do rei D. Manuel, filha de Filipe I, ‘o Belo’, e de Joana, ‘a Louca’ de Espanha, e irmã do imperador Carlos V). Tendo em conta a dimensão da “cortina” recebida (8,25 metros de comprido), podemos conjeturar tratar-se de um bom retábulo pintado na capela privativa da rainha, estrutura já existente decerto desde o tempo de D. João II, mas talvez reformada na obra de ampliação dos Paços de 1513 a 1516, conforme a sua localização deixa supor.
O retábulo pode bem ser de 1519, quiçá obra de João de Espinosa, outro espanhol há muito radicado em Portugal e que por essa época detinha o invejável estatuto de “mestre da pintura” do rei. Mas não nos surpreenderia que este retábulo já existisse desde a década anterior, nesse caso talvez pintado por Francisco Henriques aquando da sua permanência na cidade (1508-1510). A ser verdade esta hipótese, não só o estatuto do pintor é compatível com uma tal encomenda, como a informação de “17 retábulos” constante na carta de quitação a Álvaro Velho de 1515, lavrada no término da empreitada de São Francisco, faz supor a existência de dois retábulos “de sobra” além dos 15 que sabemos pintados para outras tantas capelas da igreja (12 laterais, 2 colaterais e o da capela-mor). Certo apenas o facto de Filipe de Barrera receber sete varas e meia de panos pintados de cambaia e deles fazer uma “cortina” para o retábulo que decorava a “capela do jardim da rainha”.
Pese embora esta nossa convicção, o documento em causa presta-se a equívocos, pois conhece-se este jardineiro valenciano a trabalhar no “Jardim da Rainha”, mas em Lisboa. Contudo, o documento é assinado por D. Manuel a 7 de junho de 1519, em Évora, onde a corte permanece desde o mês anterior, e da leitura do documento nada indica que o rei se esteja a referir ao jardim do Paço da Ribeira.
Aproveite-se para atualizar o nome do jardineiro valenciano em Filipe de Barrera, tal como assina, e não Barreira como a documentação portuguesa sempre o refere. Este documento, por si assinado, esclarece sem margem para dúvida que ele é natural de Valência, onde o apelido é, aliás, bastante comum.