Temos visto frequentemente nos textos mensais que publicamos nesta revista (há já uma década) como importam as fontes primárias na construção historiográfica do nosso património cultural comum. O caso que aqui trazemos é mais um desses bons exemplos. ‘Exemplar’, tanto mais, porque ele nos comprova a importância da interdisciplinaridade na investigação patrimonial.
Com efeito, áreas de saber como a Arqueologia têm um precioso aliado neste tipo documentação, sobretudo a exarada entre os reinados de D. Afonso V e D. João III. E não só pela informação miúda de vestígios arqueológicos do “tempo de mouros”, designação comum quase sempre associada ao longo período do Alto e Baixo império romano, mas porque aí se registam antas, marcos (ou “padrões”, muitas vezes miliários), caminhos “velhos”, pedras, barrocas e “arrifes”, estes os melhores marcadores territoriais onde neles se insculpiam cruzes “a picão” (picadas a picão de ferro), cruciformes tantas vezes identificados pelos arqueólogos (não raro por manifesto desconhecimento das fontes documentais) como manifestações da Pré-História.
A própria História da Arte é muito devedora destes fundos documentais à hora do recenseamento de manifestações cripto-históricas, pois aí se acham preciosas descrições (por vezes surpreendentemente detalhadas e com terminologia própria) sobre o património artístico, hoje grandemente perdido, de igrejas e ermidas rurais, como seja a imaginária devocional a fresco e de vulto.
Uma das fontes onde melhor se acha registada essa ‘fisiografia’ do mundo antigo são as visitações das Ordens Militares, o que para o Alentejo significa dizer as de Santiago (a mais extensa territorialmente) e a de Avis. Precisamente nesta última, que se estendia na sua máxima extensão fundiária de Samora Correia a Montalvão, e que detinha ainda as comendas Juromenha, Alandroal e Elvas (aqui, por exemplo, a visitação de 1516 descreve a igreja de Santa Maria do castelo ainda na sua primitiva feição de mesquita), boa parte do território era atravessado pela antiga estrada romana que ligava Olisipo (Lisboa) a Emerita Augusta (Mérida), a via XIV segundo o Itinerário de Antonino.
Razão para que em locais como a aldeia da Seda, ‘visitada’ pelos emissários da Ordem de Avis em 1519, se apurar abundante informação arqueológica provinda justamente da leitura das confrontações territoriais (terras, hortas, ferragiais e vinhas). Alguma dessa informação inédita, de que direcionamos parte dela para a tese doutoral que ultimamos na Universidade de Coimbra, mostra-nos quão importante era esse eixo viário romano, solidamente construído e pontuado por “padrões”, conhecido pelo menos desde o período manuelino como ‘estrada do aRiçeçe’, isto é Alicerce (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ordem de Avis e Convento de São Bento de Avis, liv. 15, fls. 193 e sgs.).
De particular menção neste antigo (e inóspito) município da Seda é a pequena ermida rural de Nossa Senhora de Alparajam (Alparajão) que, à pergunta dos visitadores sobre as origens do culto, “todos disseram que era ali já em tempo antigo grande povoação segundo parecia ser assim por os edifícios que derredor da dita ermita estavam”. Lendo o livro (de leitura obrigatória para o tema) os ‘Itinerários Romanos do Alentejo’, de André Carneiro, aí se dá nota (à página 61) da ermida de Nossa Senhora dos Prazeres, “a extinta Alperejon, onde existiu povoado e torre romanos, posteriormente islamizados, e uma igreja-santuário de grande relevância regional. Embora no terreno atualmente não existam especiais dados a assinalar, a passagem da via [romana] deveria ser uma realidade, a julgar pelo miliário de Tácito apresentado pelo autor [Mário Saa]”.
Cotejando a visitação de 1519, tudo bate certo, pois, com as informações colhidas por D. Frei Nuno, prior-mor do Convento de Avis, e D. Duarte de Almeida comendador da vila de Seda. E se o miliário de Tácito é provavelmente um dos “padrões” aí referenciados como um dos marcadores do território, tudo fica mais claro quando, à fl. 195 do manuscrito, se clarifica que a demarcação segue “a estrada que vem da ponte de Vila Formosa que se chama a estrada do arriçeçe (Alicerce) de fronte de um padrão grande que esta da outra parte da dita estrada”; isto depois de se mencionar que a dita demarcação segue ao longo da estrada, levando “o arriçeçe a fundo pera a ponte de Sor”.
Nota final para o significado deste arábico ‘alicerce’ (al-isas), nomenclatura que perdurou ao longo dos séculos e que Mário Saa ainda registou localmente como ‘Canada do Alicerce’ (embora o Archeólogo Portugues de 1929 já se refira à “estrada do Alicerce” como via romana, ou ‘via latina’). Com efeito, o nome provém certamente dos impressionantes vestígios pétreos da via, muito encaixada no terreno e bem estruturada na sua fundação, isto é, no seu alicerce. Embora a sua transitabilidade viária fosse pouco propícia ao transporte de mercadorias por tração animal, decerto pela incapacidade de conservação do pavimento lajeado, a sua presença na paisagem era, como atestam os documentos, bastante assinalável, tanto mais que as majestosas pontes correspondentes ao itinerário, a de Sor (já desaparecida) e de Vila Formosa, mantinham toda a sua operacionalidade. Esta última, cuja foto acompanha o texto, é um dos melhores exemplos ibéricos da tecnologia romana na construção de grandes obras públicas e que, além da sua qualidade arquitetónica, ainda hoje se mantém operacional.