Como já aqui diversas vezes referimos, a Biblioteca Nacional de España guarda um importante acervo documental sobre a identidade histórica portuguesa. Por isso não é de mais trazer uma outra notícia colhida nas Relações manuscritas de Portugal desde o ano de 1643 até 1646, neste caso sobre os primeiros anos do reinado de D. João IV, o rei Restaurador, que depois do domínio filipino (1580-1640) colocou na regência portuguesa a dinastia dos Bragança (1640-1910).
O texto que aqui se publica, creio que pela primeira vez, mostra como D. João IV, estando em Lisboa, se deslocou a Sintra, hábito antigo dos reis portugueses, particularmente no verão. E como também era habitual, a visita a Sintra tinha paragens obrigatórias aos pontos religiosos mais notáveis e às ocorrências geológicas que a tradição povoara de lendas e mitos. Está neste caso a Pedra de Alvidrar. Trata-se de uma enorme laje de pedra, quase em posição vertical, entre as praias da Adaga e da Ursa. A sua singularidade geológica, a que se junta o enorme desafio da escalada daquela superfície plana e muito inclinada em direção ao mar, sempre constituiu uma curiosidade da zona costeira de Sintra que, recorde-se, constitui o extremo mais ocidental da Europa. Donde, também o rei Restaurador se mostrar interessado em ver, com os seus próprios olhos, “couza bem notauel sendo tão medonha uista”, nesta sua jornada a Sintra, ocorrida a 29 de julho de 1646. Eis a (feliz) crónica desse dia:
“Partimos de Alcantara Domingo pela menhã ja dia claro depois de Sua Megestade ouuir missa no seu oratorio, e a maior parte dos que o acompanhavamos: iamos os seus criados que costumamos segui lo e conuidados os Condes de Miranda e Calheta, Antonio Correa senhor de Bellas, João Nunes da Cunha, Manoel de Saldanha e Dom Diogo de Lima. A poucos paços de saido começou a chouer meudo e muito, e chegamos a Barquerena bastantissimamente molhados. Ali vimos a caza de armas, e os malhos, e as mais officinas della. Passou el Rey auante com animo de vir jantar à Pena, mas indo uer o Conuento de Pena Longa lhe pareceo tão fermozo, e era ja tão tarde que se ficou alli, e comeo na celebrada fonte da Pena à uista de todo o pouo que quis entrar. Nos o fizemos depois todos no refeitorio, e com pouco repouzo depois de meza tornamos a marchar para a Pena onde chegariamos as duas horas com bastante sol. Vio el Rey a caza breuissimamente (fl. 73) e no refeitorio hauia doces e flores e logo foi tudo saqueado. Dalli fomos para Cintra aonde chegariamos as quatro com as folias e festas ordinarias da terra e muito pouo e el Rey foi direito aos Paços (que) estavão bem barridos, e alguma couza anseamdos (sic, asseados), e principalmente a caza de armas e que se lhe ponhão titulos de letra moderna porque muito mal podião ler a antiga. A tarde se gastou nisto, e em despachados huns correos que uierão, porque não fosse tudo folgar, aos criados del Rey nos alojarão nos Paços, e a mim e ao almotace mor nos derão o quarto do Cardeal que esta muito bem tratado. Ao outro dia pola manhã depois de ouuir missa fomos aos capuchinhos sem saber nenhum de nós o que se hauia de fazer dahi por diante. Vista a caza foi el Rey uer a quinta de Dom Manoel de Castro e lhe pareceo tão fermoza que se ficou alli a jantar debaxo de humas azinheiras das quaes se não dezapegou mais houue alli muita festa, e depois de comer se despedio toda a carruagem para Alcantara com tenção de uirmos alli a dormir, porem à tarde a requerimento do Principe se assentou que ficassemos a dormir na mesma quinta, e que fossemos a tarde uer a pedra de Aluidrar, e a mi me pereceo couza bem notauel sendo tão medonha uista a facilidade com que os naturaes sobem e decem por ella, vimos o fogo, e tornamos pela quinta de Antonio de Mello de Castro que tras muitos ueados onde el Rey quis matar hum mas não pode, felo porem o Conde dos Arcos (que tambem foi conuidado e esqueceome), deixandose ficar detras e o mandou depois á quinta de Dom Manoel donde el Rey foi a dormir sem cea nem cama mais que o que se pode buscar emprestado por huns uezinhos, mas nada faltou que a prezença do Rey a tudo abrange. A terça feira pela menhã uiemos jantar a Bellas ja com sol. Alli houue muita festa com muitas fontes, e folgamos tanto todos com a agoa que uiemos muito molhados, por trauesura do Princepe, para caza onde chegamos com pouco dia. Á quarta feira uiemos dormir a esta caza. Esta jornada fes el Rey á instancia do Principe que desejaua muito uer estes lugares, foi a cauallo muito fermoso rocim de campo grande de grande andadura, e sempre diante de todos (fl.73v) incansavel e sofredor da chuua, pó, e mais caminhos com muita alegria”.
Biblioteca Nacional de España (Biblioteca Digital Hispánica). ‘Relações manuscritas de Portugal desde o ano de 1643 até 1646’. MSS/8187 fls. 72v – 73v. Disponível à leitura digital