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Manuel Fernandes, um desconhecido pintor de Estremoz da segunda metade do séc. XVI

Manuel Fernandes, um desconhecido pintor de Estremoz da segunda metade do séc. XVI. Grada 178. Francisco Bilou
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Seja pela cómoda valorização do papel de artistas já consagrados ou simples desinteresse no árduo trabalho de pesquisa arquivística, tem custado a dissipar em Portugal a ‘síndrome’ de Grão Vasco, a da atribuição a um só artista de obras tidas por referentes visuais de uma época ou estilo.

Como exemplo mais recente, acaba de ser atribuído ao arquiteto Diogo de Torralva a traça da Sé de Portalegre (para onde trabalhou o pintor pacense Luís de Morales), mesmo que a nave central do templo, fechada em 1571, mostre uma exuberante abóboda polinervada a lembrar a melhor tradição tardo-gótica do início desse século. Arquiteto que, recorde-se, se responsabilizara, década e meia antes, pela obra mais ‘serliana’ de quantas existem na Península Ibérica, o claustro do Convento de Cristo de Tomar.

Na sombra de Diogo de Torralva, Gaspar Mendes e o seu genro João Vaz, os dois mestres-de-obra documentados na dita Sé de Portalegre ficaram, naturalmente, remetidos à condição subalterna de simples pedreiros da demorada empreitada. Desconhece, pois, quem defende aquele conhecido arquiteto português (mas talvez de origens espanholas) que o mestre João Vaz foi o responsável pelo debuxo da reforma da matriz de Cabeço de Vide precisamente em 1571, sinal da sua competência também como tracista.

Levada à letra esta proposição, o mesmo será dizer que um mestre-de-obras como João Vaz não seria mais do que simples pedreiro a cumprir um projeto alheio sem nele ter qualquer intervenção criativa. Claro que a corte portuguesa, como todas as cortes europeias do tempo, reunia-se dos melhores arquitetos para conceber e supervisionar quer as obras régias quer todas as demais que gravitassem na esfera decisória da Coroa. Contudo, as adaptações do projeto às realidades locais (a Sé de Mirando do Douro é um excelente exemplo), bem como os constantes atrasos na conclusão das empreitadas (quase sempre por escassez de financiamento e de recursos humanos qualificados), dificultavam amiúde, sobretudo nos territórios periféricos, a consumação integral da traça fundadora, por melhor que ela fosse. O resulto é o que abunda pelo país: obras híbridas, situadas algures entre o ideal e o possível, onde não raro se podem apreciar ainda visíveis as mudanças de gosto ocorridas no decurso de tais delongas obreiras.

A este mundo percecionado pela historiografia tradicional face à obra tal como hoje se apresenta (ela própria resultante de séculos de adições, mutações e restauros revivalistas), convém juntar, pois, o mundo dos documentos de arquivo, quantas vezes dissimulados entre milhares de palavras estéreis, e também por isso maus de ler e de descodificar. Mas já seria tempo de a historiografia portuguesa ir contrariando, até por princípio epistemológico, esta ideia quase sempre inexata para o nosso século XVI: de que a uma grande obra (como a Sé de Portalegre que aqui se exemplifica) se deve tributar, ipso facto, o génio criativo de um só mestre.

Ora, se no século XIX toda a boa obra de pintura portuguesa de Quinhentos era de Grão Vasco (o pintor Vasco Fernandes estabelecido em Viseu), os resquícios de tal ‘síndrome’ vão prevalecendo teimosamente nas atribuições artísticas onde tudo parece moldável a este ou aquele mestre consagrado, ou a esta ou aquela oficina se a obra é mais fruste. Este raciocínio fácil esquece-se quase sempre da própria natureza associativa das ‘artes mecânicas’, do ecletismo artístico, do gosto e intervenção no processo criativo do encomendador, da importação e das assimetrias de qualidade (não raro do próprio artista) em função do rédito contratualizado…

Diga-se que os exemplos que contradizem a visão tradicional do ‘mestre-único’ são vários, embora naturalmente em grau diferenciado. Nessa matéria compraz-nos a ‘descoberta’ de dois casos paradigmáticos: o de Martim Lourenço, o mestre de São Francisco de Évora e da Ponte da Ajuda (Guadiana), também dita na época ‘ponte D’El Rei’, duas das mais importantes obras do século XVI português; e o de Pero Gomes, o escultor que se responsabilizou pelo mais monumental dos túmulos-retábulo ‘ao romano’ do país (1540-42). A estes dois nomes juntamos aqui neste texto a base fundamental para, pela primeira vez, retirar do anonimato o pintor Manuel Fernandes de Estremoz, a quem doravante importa ter presente na pintura alentejana (e acaso raiana) da segunda metade do século XVI.

Se nos lembrarmos que só em Lisboa, em 1552, existiam pelo menos três dezenas de pintores, muitos de quem pouco ou nada se conhece ou atribui, por aqui se vê do muito que nos está a escapar em matéria autoral. A estes acrescem uns quantos artistas periféricos e mais uns quantos estrangeiros de passagem, chegados e partidos ao ritmo das encomendas, muitos deles, aliás, à procura do trabalho que perderam na sua terra natal em razão da iconoclastia (mais calvinista do que luterana) da Europa setentrional. Demasiada oferta, pois, para que a arte portuguesa se reduza a uma dúzia de nomes consagrados, pese embora a indiscutível qualidade e identidade artística de alguns deles.

Quanto aos artistas itinerantes, importa não julgar a sua presença entre nós como um movimento num único sentido. Como exemplo, e restringindo a questão apenas à geografia peninsular, se é verdade que alguns bons artistas espanhóis vão fluindo pelo Portugal de Quinhentos, como o bem conhecido marceneiro-imaginário Diogo de Sarça (Diego de la Zarza), de que já demos aqui nota em revista passada, o contrário também se verifica, e desde cedo. Veja-se exemplarmente o caso dos pintores portugueses Pero Eanes e João de Paniza, documentados em Saragoça na oficina do pintor Salvador Roig (act. entre 1444-81), a assinarem em setembro de 1454 um contrato de aprendizagem por três e cinco anos, respetivamente (Gómez de Valenzuela, Manuel: ‘Documentos sobre pintura gótica en Aragón en el siglo XV’, Cuadernos de Aragón, N. 88, 2023, p. 107).

Serve esta longa (mas necessária) introdução para dar a conhecer aos leitores desta revista um pintor que, escapando-nos até ao momento a sua obra pictórica, temos agora mais certezas documentais de ter sido um oficial da maior importância regional na segunda metade do século XVI. O seu nome, Manuel Fernandes, até parece relacionar-se com o homónimo pintor-dourador de Évora. Mas o facto de ser natural de Estremoz e aqui residente mostra claramente tratar-se de um outro pintor e de maior fama.

Na verdade, não é um nome sem história, pois com muita probabilidade é ele quem dá nome à (atual) Rua do Pintor daquela cidade alentejana, sendo topónimo já existente no início do século XVII. A sua reiterada presença nos registos paroquiais de Santo André de Estremoz é o melhor indicador de claro estatuto social.

Mas como oficial de pintura apenas o tínhamos registado a pintar para a câmara estremocense (1558) e para as Maltesas de Estremoz (1583), neste último caso provavelmente o retábulo da capela-mor da igreja. O que se não sabia (e isso faz toda a diferença na perceção qualitativa da sua obra) é que ele, vindo de pintar o retábulo da igreja paroquial da aldeia de Seda (1563), também produz neste ano um retábulo para o Convento de Avis por contrato com D. Jorge de Lencastre (1548-78), conforme se documenta no cartório de Avis: “Manuel Fernandes pintor natural da vila de Estremoz que ora esta em esta vila [de Avis] pintando o retábulo do senhor Dom Jorge de Lencastre prior-mor do convento desta vila”. (Arquivo Distrital de Portalegre, Cartório Notarial de Avis, Cx.12, fls. 59v- 60).

Trata-se, sem dúvida, de um pintor muito requisitado e com a melhor clientela da região, a quem continua a faltar, infelizmente, obra pictórica em contexto (o que não significa perdida). Um caso mais, pois, de um pintor regional até aqui desconhecido com longa carreira artística na região alto-alentejana, cuja obra vale bem a pena indagar.

Seja, pois, este testemunho documental uma prova mais de como na sombra dos grandes mestres continua escondido um património autoral inexplorado a que importa dar mais atenção e valor. Na verdade, um investimento necessário que é também um caminho possível, e certamente decisivo, para fortalecer a identidade cultural destes nossos territórios interiores.

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