Cito Rafael Moreira nesse incontornável estudo sobre a arte portuguesa do Renascimento, onde Évora surge como centro difusor dessa nova cultura artística. Discorrendo sobre a obra de “arquitectos literatos e escultores” entre os anos de 1535 a 1545, de que nos ficaram obras como a igreja da Graça, a torrinha terminal do Aqueduto (desaparecida), o túmulo de D. Afonso de Portugal e a igreja do conventinho do Bom Jesus de Valverde, todas elas exercícios experimentais e, também por isso, acompanhando a vanguarda artística europeia da época, tudo o que aí se lê é talvez o melhor elogio ao património cultural da cidade de quantos a História da Arte portuguesa produziu.
E vale bem a pena ler com atenção tudo o que aí se escreve sobre o património eborense e o seu significado para a cultura portuguesa, e também espanhola. Sobretudo agora que Évora se candidata a Capital Europeia da Cultura (2027) e onde é suposto, caso o consiga, acrescentar valores culturais próprios à Europa.
Não que esse olhar retrospetivo às “glórias passadas” nos encha o peito de saudosismo pátrio. Tão só porque nos obriga a refletir sobre a construção da memória coletiva da cidade como o mais seguro ativo do presente.
Há, contudo, uma razão suprema: o facto de Évora ter sido, então, uma das capitais europeias da cultura. Sim, nessa tal década que valeu por um século. Onde, por manifesta vontade do “Estado”, se concentrou em Évora o potencial criativo de uma nação. Nas artes, nas ciências e no ensino. Lembrem-se pintores como Gregório Lopes; escultores como Nicolau Chanterene; iluminadores como António de Holanda; arquitetos como Miguel de Arruda e Diogo de Torralva; dramaturgos como Gil Vicente; letrados e pedagogos como André de Resende e Nicolau Clenardo; matemáticos e tribunos como Pedro Nunes e Francisco de Melo; teóricos de arte como Francisco de Holanda, que foi, recorde-se, o primeiro humanista a discorrer sobre a “Ideia” na arte; poetizas como Luísa Sigeia; músicos como Mateus de Aranda; impressores e livreiros como André de Burgos (todos estes três últimos casos cidadãos espanhóis). E, enfim, lembre-se a Universidade, a Escola polifónica da Sé de Évora e os grandes projetos hidráulicos (o Aqueduto e toda o equipamento de distribuição pública da água).
Em tudo isto se presente uma ideia criadora, de urbanidade e civilidade, projetada ao futuro. Não sei se desmedida na sua ambição. Certamente atravessada de contradições sociais, religiosas, talvez mentais. Mas forte o suficiente para marcar o tempo, transformá-lo, imprimi-lo de crer e de vontade.
Não é esse pretérito “perfeito” que nos está em falta. Mas a mesma ambição coletiva. Talvez mais ambição criativa, que faça de 2020-2030 a tal década que nos valha por um século.
Pub. citada:
Moreira, Rafael de Faria Domingues. ‘A arquitectura do Renascimento no Sul de Portugal: a encomenda régia entre o moderno e o romano’. Tese de doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, II Vols. Lisboa, 1991.