O primitivo mosteiro consagrado a Nossa Senhora da Misericórdia, da Ordem e Congregação de São Jerónimo, foi canonicamente autorizado por bula papal de Leão X, a 12 de julho de 1513, e teve como lugar de fundação a deserta ilha da Berlenga Grande, ao largo de Peniche (foto que acompanha o texto).
Instituído por Dona Maria, segunda esposa do rei D. Manuel, filha dos Reis Católicos, e entregue o seu governo espiritual ao confessor da rainha, Frei Gabriel, a localização desta primitiva estrutura monástica reproduzia as condições de isolamento e de ascese mística a exemplo do próprio São Jerónimo, imagem plasmada, aliás, na excecional pintura São João Evangelista em Patmos, obra do chamado ‘Mestre da Lourinhã’, produzida cerca de 1515 para o primitivo retábulo do mosteiro da Berlenga Grande, hoje exposto na Santa Casa da Misericórdia da Lourinhã.
Todavia, as difíceis condições de salubridade da ilha e a sua vulnerabilidade face às repetidas investidas de corsários, levaram a que a pequena comunidade religiosa solicitasse a Dona Catarina de Áustria, esposa de D. João III e irmã do imperador Carlos V, a necessária autorização para construir um novo mosteiro que acautelasse melhores condições de salubridade e segurança. A escolha do local recaiu em Vale Benfeito, perto de Óbidos.
Ainda sem a necessária autorização papal, que só viria em 1547 por bula de Paulo III, as obras de construção do novo mosteiro iniciaram-se por volta de 1535. Do bom andamento das mesmas se encarregou Frei André de Olivença, missão a lembrar outro oliventino, Frei Diogo de Olivença, supervisor da reforma do mosteiro de Nossa Senhora da Assunção de Faro.
A 21 de janeiro de 1539, já com a estrutura monástica muito avançada ao nível dos principais cómodos comunitários, Frei André de Olivença escreve a Pedro de Carvalho, o provedor das obras régias, a dar-lhe conta do estado da obra. Trata-se de um documento pouco conhecido da historiografia de arte portuguesa cujo interesse histórico mostra o seguinte: a forma como era feita a supervisão das obras régias através de emissários da confiança do comitente (neste caso a própria rainha), não se abstendo de criticar o regimento e a traça (de Diogo de Torralva como supomos); o papel centralizador do provedor das obras régias, neste caso Pedro Carvalho; como as traças se adaptam no decurso da empreitada; a escala dos refeitórios de duas comunidades jerónimas (Nossa Senhora da Pena, em Sintra, e do Espinheiro, em Évora) e a localização das janelas e da mesa do prior (inédito para o caso do Espinheiro); e, enfim, a importância do palmo como a medida mais comum nas obras de pedraria portuguesa.
Eis o documento:
“Senhor // Sabera v. m. que no Refeitor(io) de Valebenfeito nom ficou pulpeto pera ler a mesa. / Na cozinha tambem nom fica pia pera lauar a louça e hum cano grande por debaxo da terra pera sayr çugidade fora da casa. // Mandarom fazer seys grades de ferro –s– duas pera o Refeitor duas pera o capitulo e duas pera o çeleiro as quaes todas nom tem de largo em lume mays de palmo e meio e tiram de altura çinquo ou seys palmos desto nom me derom conta se nam quando vi assentar as janelas do Refeitor pollas grades clamey e nom me valeo escusamse com ho Regimento e traça e este defeito he grande pera o Refeitor que hade ser casa clara e nom ham sempre de comer a candea porque ho Refeitor de nossa senhora da pena que he bem pequeno tem janelas de largo tres palmos e tres dedos dos meos e as de nossa senhora do espinheiro tem çimquo palmos de largo e ho nosso Refeitor he quasi tamanho como este do espinheiro e tem janelas da mesma maneira no topo da mesa do prior pera o vale onde ho arvoredo lhe hade tirar parte da vista estas cousas disse a suas A(ltezas) Remeterom me a v. m. pratique tudo com eles e ordenem ho que lhe bem parecer esto digo porque em huma obra grande como esta sempre ham de correr cousas semelhantes e dobramsse as despesas em assentar e desmanchar e Romper paredes pera se fazer o que se nom pode escusar. // Fr. andreas d’olivença (ass.)”. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Corpo Cronológico, Parte I, mç. 63, n.º 115.