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O primeiro moinho de vento em Portugal “ao modo de Flandres”

O primeiro moinho de vento em Portugal “ao modo de Flandres”
Foto: Cedida
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Évora, como cidade de corte e ‘segunda cidade do reino’, marcou as artes e as ciências nos alvores da Idade Moderna. Sem surpresa, foi na capital alentejana que se edificaram obras e monumentos que desafiaram o conhecimento, o gosto e as convenções da época, caso do Aqueduto da Água da Prata (1533-39) ou a igreja de Nossa Senhora da Graça (1536-40). Sem surpresa, aqui se inventou, em 1537, o “instrumento de sombras” usado por D. João de Castro na sua viagem à Índia, obra inovadora e muito apreciada em toda a Europa. E foi ainda aqui que se destacou a célebre Escola Polifónica da Sé de Évora e o seu mestre-de-capela espanhol Mateus de Aranda (c. 1495-1548). A ele se devem os tratados musicais de ‘Canto Llãno’ (1533) e de ‘Canto Mensurable’ (1535), o primeiro dedicado à monodia litúrgica, o segundo à prática polifónica, ambos pioneiros a nível peninsular, afinal alfobre onde se formou provavelmente o mestiço oliventino Vicente Lusitano, afamado compositor em Itália e hoje tido como o primeiro negro com obra publicada a nível mundial.

Neste contexto não se deve estranhar que em 1552 um eborense, Jerónimo Fragoso, tenha solicitado autorização régia a D. João III para “fazer um moinho de vento na cidade de Évora ao modo dos que tem Flandres”. Embora não sendo então uma absoluta novidade, pois a cidade já desde o século anterior tinha em funcionamento pelo menos um moinho junto de uma das suas portas (situada na cota mais alta, a Porta do Moinho de Vento), esta pretensão de Jerónimo Fragoso era, contudo, absolutamente pioneira na conjuntura moageira portuguesa da época.

Acontece, porém, que quando Sousa Viterbo publicou esta notícia no ‘Archeologo Português’ (Vol. II, 1896, pp. 193-204) respigada da chancelaria régia (ANTT, Chancelaria de D. João III, Privilégios, Liv. 1, fl. 128v), uma dúvida ficou por esclarecer até hoje: como e com que conhecimento técnico Jerónimo Fragoso surge em 1552 a obter do rei um tão inusitado encargo?

A dúvida, no entanto, tem imediato esclarecimento se consultarmos no Arquivo Nacional – Torre do Tombo (ANTT) a escassíssima biografia desta curiosa figura, que julgamos filho de Álvaro Fragoso, cavaleiro e contador da Casa Real e fazenda do Rei, família, aliás, que deu nome à antiga ‘Rua dos Fragosos’ situada na zona de ‘Cogulos’. Com efeito, em 1550 a Rainha Dona Catarina manda pagar a Jerónimo Fragoso, “correio do tesoureiro Álvaro Lopes que ora veio da Alemanha”, 3.000 réis “pelos direitos que pagou em França de uma caixa que por ele envi(ou) ao imperador (s)eu senhor” (ANTT, ‘Corpo Cronológico’, Parte I, mç. 85, n.º 83). Fica claro, pois, que foi este contacto privilegiado com o norte da Europa em 1550 a razão mais próxima da iniciativa de construção de um “moinho flamengo” em Évora. Embora esta circunstância não explique tudo, nomeadamente os contornos técnicos de funcionamento da estrutura moageira, não há dúvida que esta viagem à Alemanha, com passagem pela Flandres, foi fundamental ao sucesso de tal operação. E dizemos sucesso, pois não só D. João III baliza temporalmente a construção do engenho (3 anos), dando-lhe para o efeito o exclusivo da “patente”, como sabemos que o mesmo estava construído e funcional em 1555. De facto, numa certidão de testamento de Jerónimo Fragoso de 1568 aí se referem como bens patrimoniais “casas e moinho de vento” (ANTT, ‘Casa de Santa Iria’, cx. 5, doc. 5º).

Estrutura de madeira, como supomos, e talvez de dimensão relativamente modesta, nada restou que se saiba desse empreendimento na memória da cidade. Sequer a sua localização, que bem pudemos supor coincidente com a zona alta de Cogulos perto da cerca de São Domingos. Em todo o caso, esta notícia confirma o que temos reiterado (sem nenhum sucesso) a propósito da ‘Évora, Capital Europeia da Cultura’ (2027): que a cidade já foi, há precisamente cinco séculos, uma das principais cidades europeias de cultura. Foi-o, de resto, não tanto pelas realizações monumentais, mas pelo empreendedorismo e pujança intelectual dos seus agentes, como a figura de Jerónimo Fragoso tão bem sublinha.


Nota: Por razões profissionais e académicas fechamos aqui uma década de colaboração com esta revista. Aproveitamos a circunstância para transmitir aos seus editores, colaboradores e leitores o enorme privilégio que nos deram na divulgação do património histórico-cultural entre os nossos países irmãos.

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